sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A LIBERDADE COMO VIÉS PARA FELICIDADE

Nelson Pires1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo examinar o conceito de liberdade na obra O Livre-Arbítrio, de Santo Agostinho. Cuja boa parte de sua vida foi pautada por procurar defender a tese de que Deus não é mau e, se erramos, é porque não soubemos usar do livre-arbítrio que nos foi dado, assim como não soubemos seguir no caminho a que a instrução que nos foi dada guiou-nos. Também se observou durante a leitura, às suas agruras em se desvencilhar das más influências que recebera dos Maniqueus, bem como sua luta em manter-se guiado num caminho seguro que, diferentemente de seu passado, o levasse à felicidade plena, fazendo com que muito pensasse a respeito da liberdade humana e sua relação com a origem do mal. E foi o que ele fez, durante o itinerário de todas as páginas de sua obra, quando dialogava com seu interlocutor, Evódio, para que este pudesse entender, da mesma maneira que ele, o caminho e nuances pelos quais passa um ser de Deus para que consiga alcançar a tão desejada felicidade, alcançada através da liberdade e somente a teremos quando estivermos junto a Deus. Ao final, de uma maneira mais atrevida do que catedrática, procurarei “trazer” Agostinho, para debater sobre seu método na atualidade. Tanto no sentido de procurarmos meios para que se possa seguir dentro de sua tese nos dias de hoje, bem como em saber como e de que maneira é possível (se for) não pecar, estando-nos em uma época onde os valores morais e éticos estão tão deturpados. Por fim, apenas para instigar-nos a respeito, o provocarei sobre o “pecado original”, dentro do contexto da época.
PALAVRAS-CHAVES: Livre-Arbítrio, Liberdade e Felicidade.
Santo Agostinho começou a querer saber mais sobre o cristianismo e passou a ter uma vida um tanto quanto nômade (principalmente no campo investigador), tornando-se um dos grandes mantenedores da doutrina da Igreja Católica. Nessa obra, em formato de diálogo ao estilo platônico, (comum à educação da época) o Filósofo Hiponense passa boa parte do livro lutando contra a tese dualística dos maniqueístas. Logo de início, dialogando minuciosamente com Evódio, seu interlocutor, ele inicia seu trajeto retórico a fim de tornar claro a questão sobre onde nascera o mal, assim como busca dar respostas àqueles (maniqueus) que atribuíam a Deus tal origem, apresentando uma série de elementos que provam ser na liberdade, ou, no livre-arbítrio concedido a nós e à nossa inoperância com esta (e) que nasce o mal. Ao que ele diz: “Ora, quando Deus pune quem peca, que outra coisa parece ele dizer, senão isto: por que é que não usaste da vontade livre para o fim que eu te dei, isto é, para proceder honestamente? (…) Com efeito, se o homem não dispusesse de vontade livre, tanto seria injusto o castigo como o prêmio”.2
Este tema exposto irá permear toda sua teorização e também a Idade Média acerca do assunto e ele começa com a seguinte pergunta: “será Deus o autor do mal?”3 Contudo, Agostinho passa todo o transcorrer de seu texto defendendo a ideia de a origem do mal estar na liberdade que nos foi dada e, quando precisa enfatizar sua teoria, diz que devemos pautar nossa linha investigatória na razão, contanto que – e isso ele frisa inúmeras vezes – a usemos para que creiamos naquilo que se acredita ou, como conhecemos seu dito onde ele diz a Evódio que devem continuar seu caminho traçado pelo profeta: Se não acreditardes não entendereis.4
Contudo, em nenhum momento, torna sua obra algo insignificante. Muito pelo contrário, dada sua enorme contribuição à história da filosofia, à exegese bíblica, aos filósofos posteriores à sua época, entre vários. O Livre-Arbítrio tem o objetivo de trazer o real problema que é o da liberdade humana e a sua relação com a origem do mal. E é essa uma das preocupações que desde a infância de Agostinho o deixa desconfortado e que talvez – num primeiro momento – o tenha levado ao maniqueísmo, pois talvez achasse que lá encontraria suas respostas. Mas o que sempre o incomodava era justamente não aceitar a hipótese de que Deus pudesse ser o responsável pela origem do mal e foi o que lhe fez: seguiu trilhando seu caminho de indagação sobre a liberdade até que, em contato com Ambrósio, encontrou exortação suficiente para aprofundar-se no estudo o que, de certa forma e devido a eloquência de Ambrósio, trouxe definitivamente Agostinho para o catolicismo. Após esse contato e o definitivo ingresso à linha cristã, Agostinho “apossa-se” dos escritos de Plotino que, mesmo não sendo o derradeiro caminho para clarificar suas dúvidas, serviu-lhe certamente de um grande e frutífero começo. Essa ideia neoplatônica, que Plotino dizia que o levaria à certeza de “um criador bom e poderoso e a fonte de toda a realidade”,5 e que “evitaria que o mal figurasse entre os seres, nem tampouco impediria alguém de encontrar no Criador a paz e a felicidade”6, não perduraria para sempre entre os ensejos do Filósofo, mas jamais o desviaria dali para frente. Com sua inquietação bastante visível e suas clarificações obtidas através da fé, ele começa com bastante perspicácia a busca de uma solução sobre a questão da liberdade à base da razão, como já mencionado, a saber: o livre-arbítrio.
Pois é através da razão que ele irá propor uma resposta para a origem do mal, dizendo que o nascimento do mal moral, do pecado, (que advém do mal moral, por nascer de nossas ações) etc., está no mau uso que fazemos da liberdade que nos foi dada. Assim, por várias vezes o Autor nos diz que “somos livres para fazer o bem e que não somos forçados a fazermos o mal por nenhuma carência”,7 desde que estejamos firmes na graça de Deus. Agostinho encontrou, segundo o texto de Nair de Assis Oliveira, uma sintetização a essa idéia de liberdade, vontade e a graça e de não necessitarmos fazer o mal de nenhuma maneira, em Etienne Gilson que resumiu assim:


“Duas condições são exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que é a graça e o livre-arbítrio. Sem o livre-arbítrio não haveria problemas; sem graça, o livre-arbítrio (após o pecado original) não quereria o bem ou, se o quisesse, não conseguiria realiza-lo. A graça, portanto, não tem o efeito de suprimir a vontade, mas sim de torna-la boa, pois ela se transformará em má. Esse poder de usar bem o livre-arbítrio é precisamente a liberdade. E o fato de alguém se encontrar confirmado na graça, a ponto de não poder mais fazer o mal, é grau supremo da liberdade”.8

Mas após essas considerações do filósofo, seu interlocutor o questiona se pode alguém cometer e/ou praticar o mal e se este (que a seu ver pode) pode ser ensinado? E, assim sendo, por quem? Ao que Agostinho disse que o mal não pode ser ensinado e, em caso de alguém comete-lo é porque afastou-se da instrução e, esta, por sua vez, só nos instrui a fazer coisas boas. Contudo, mesmo se falarmos sobre o mal, será para que nos mantenhamos afastados dele. Mas a questão é pertinente e não pode (como consta) ficar sem resposta e é o que o hiponense passa a investigar, à maneira socrática 9, junto com Evódio.
Agostinho supõe então dois tipos de instrução: a) a que nos ensina o bem e b) a que nos ensina o mal. No entanto depara-se com um outro tipo de ensino que é, de fato, com o que se preocupará em solucionar, a saber: a inteligência e se ela é um bem? Ao que ele ouve de Evódio a conclusão de que é um bem e que, uma vez adquirida, jamais a usaremos para praticar qualquer tipo de mal. Mas Agostinho – não se contendo – questiona Evódio se pode alguém (após ter sido ensinado) em não se servindo da inteligência, poderá ser tido como instruído? Evódio diz que não haveria essa possibilidade. A respeito desse tema, Agostinho o conclui da seguinte maneira:

“Logo, se toda a inteligência é boa, e quem não usa da inteligência não aprende, segue-se que todo aquele que aprende procede bem. Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligência e todo aquele que usa da inteligência procede bem. Assim, procurar de nossa instrução, sem dúvida, é procurar o autor de nossas boas ações”.10

Agostinho trataria especificamente sobre a inteligência no terceiro livro de Solilóquios, onde ele inverte os papéis com a razão, em que ele é o “discípulo” e ela a “mestre”, porem não concluiu o último livro por ter se dedicado exclusivamente à Teologia. Mas a indagação se segue, no capítulo II, uma vez que se não era a inteligência nem a instrução, a razão de agirmos mal, Evódio, então, lança outra questão de por que então praticamos o mal? Onde, verdadeiramente, encontra em Agostinho um parceiro ideal e preocupado em desvendar o problema, como ele mesmo disse: “Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais, desde que era ainda muito jovem”.11 Agostinho disse que a esta questão só conseguiu encontrar respostas porque estava sobre o “véu divino” (ou salvo como ele mesmo disse), pois sem esse ele não teria tido as mínimas condições de alcançar o que ele chamou de as primeiras liberdades, que seria a que propiciou encontrar a verdade. No entanto, para poder responder a Evódio, o Filósofo precisaria formular melhor – para que compreendesse – e procedeu pelo mesmo viés que outrora ele percorrera, haja vista a complexidade que é explicar esses temas para nós, meros mortais. Nós, que vemos em Deus uma onisciência e que quando nos criou, disse:
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra”.12

Contudo, por vezes, como o interlocutor, somos “céticos” por deveras e, assim, necessita Evódio, de respostas mais plausíveis. Pois, se somos nós “iguais” a Deus, por que praticaríamos o mal? Logo, Agostinho lança mão de seu “escudo” às críticas de onisciência e onipresença de Deus, dizendo que é preciso “crer”. E ressalta:

“(...) ele gerou, não o criou, de sua própria essência, aquele que lhe é igual, o qual é como professamos, o filho único de Deus. É aquele a quem nós denominamos, procurando as expressões mais acessíveis: ‘Força de Deus e Sabedoria de Deus’. Por meio dele, Deus fez tudo o que tirou do nada”.13

Após isso, o Filósofo diz ser preciso, antes, seguir uma linha (proposta no capítulo 3) para tratar da questão por Evódio levantada, qual seja: antes que venhamos a querer saber o por que agimos mal é saudável que se conceitue o que é o “proceder mal”. Para isso, pede a Evódio que elenque algumas ações que ele julgue ser ações más e ouve as seguintes: adultérios; homicídios; e sacrilégios; Agostinho inicia o indagando do por que ele acha que um adultério é uma má ação e se é por excelência ou por força de lei? Ao qual respondeu que é por simplesmente ser má e ele, por exemplo, não gostaria de sofre-la! O que foi facilmente rebatido por Agostinho que, supondo, se um indivíduo entregasse sua esposa a outro e vice-versa, seria isso uma ação má, visto que ouve consentimento de ambos? O que seria um grande problema para Agostinho, uma vez que se precisássemos explicar por que censuramos um adultério, sobre esse aspecto, para os que querem entender e não crer, sem que recorrêssemos à lei! Embora ele ressalte que todos os povos devessem repudiar o adultério, do ponto de vista da fé e que o que tangenciassem as verdades pela fé, seria palatável que houvesse conhecimento pela razão. “mantendo-as com certeza plena”14. Voltando à questão, dada a vagueza da falta de radicalidade nos argumentos de seu interlocutor (e por achar muito vaga a resposta do mesmo: ser mal porque não gostaria que lhe acontecesse, e que mesmo pela lei seriam condenados.), d’uma maneira majestosa, o Filósofo resume esse debate:

“Ora! Não se tem condenado também, com frequência, a muitos homens, por suas boas ações?(...) à história que é mais excelente de todas as outras, por gozar da autoridade divina (os Atos dos Apóstulos). Encontrarás aí o quanto deveríamos ter em má opinião os apóstolos e todos os mártires, se aceitássemos ser a condenação de um homem por outros o sinal certo de má ação. Pois todos aqueles cristãos foram julgados dignos de condenação por terem confessado a sua fé”.15

Todavia Agostinho assevera que nem tudo o que o homem condena é mal. Em conclusão a esta questão, ele nos diz que este mal que Evódio o questionou, é oriundo da paixão interior. Ou seja, na malícia do adultério e que por Evódio ter ido procurar a resposta no externo, se deparou com esse impasse. E por essa razão, (a título de esclarecimento também para as duas outras ações más, proposta por Evódio) alguém que quisesse ser adúltero com a conjugue de um amigo (ou conhecido), porém fosse – digamos – impotente, mas uma vez comprovado de uma ou de outra forma que ele (se pudesse) teria praticado, não o seria considerado praticante de um “mal menor”, numa linguagem agostiniana.
No capitulo quatro, Agostinho segue tratando dessas questões de atos cometidos através das paixões, assim como as relaciona com homicídios e traça paralelos com a concupiscência, que é a questão de nos satisfazer nossa sensualidade e resume dizendo que o medo também pode ser visto desta forma e, nesse sentido, “absolve” a paixão da culpa de vilã em todos os tipos de ações más. “Portanto, não será exato dizer que todo pecado, para que seja mal, nele a paixão deve dominar”.16 Todas as demais questões desse capitulo, que aqui suprimo, uma vez que trata do método de investigação para que se chegue às respostas, o que já nos é suficiente, uma vez que já o conhecemos. Apenas ele coloca a questão de nossa liberdade para uma determinada ação e “examina” (do ponto de vista legal e pela fé, digamos, racional) em diversos momentos e assim segue até o capitulo VI, onde ele apresenta uma solução para que possamos distinguir ações que devemos observa-las ora à luz da lei eterna, ora à luz da lei civil. Ele então parte para saber até onde vai a jurisdição da lei dos homens que, para Evódio, é tremendamente complexa e – talvez – impossível de se chegar a um denominador comum. Abstraindo aqui – por conhecermos – toda a dissertação acerca do caminho que nosso autor percorre até sua conclusão mas, de modo geral para que entendamos, ele constrói uma série de cenários em que a lei humana pudesse ser tida como justa mas, apostando na corrupção dos homens e sua provável ambição ao alheio, conclui que essa lei pode ser criada em um ambiente fulcral, mas que, inevitavelmente, acaba em outro insalubre e tudo que por ventura existirá de justo terá sido herdado da lei eterna. Pois é essa lei que ele chama “a Razão suprema de tudo, a qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz”17, e é imutável, está intrinsecamente entendida em nosso espírito e que é ela que ordena a tudo e a todos, bem como engloba todas as demais leis temporais vigentes, assim como as que virão.
Assim sendo, embora este texto não tenha a menor intenção de esgotar a questão – o que seria uma imprudência de minha parte tentar – Agostinho, conjectura a partir de inúmeros exemplos que a causa do nosso pecado, de nossas más ações estão sempre vinculadas ao abuso do livre-arbítrio que Deus nos deu. E é por meio desses excessos, corrupção; certas paixões; o mau uso de nossa liberdade; etc., que caímos em pecados e desgraças e, subsequentemente, a punição a que seremos submetidos virá necessariamente por nossa culpa. Pois Deus não pune os inocentes, os que usam da reta razão e os que subordinam suas ações e aspirações à lei espiritual. “(...) esse Ser, seja qual for, capaz de ultrapassar em excelência a mente dotada de virtude, não poderia de modo algum ser um Ser injusto. Tampouco, ainda que tivesse poder, ele não forçaria a mente a submeter-se às paixões”18.
No capitulo XVI, além de ratificar o exposto acima, ele também relembra Evódio do caminho percorrido até que chegasse a derradeira verdade a respeito de sua (s) questão (ões) do que seria cometer e praticar o mal, contanto que esse “cometer” não seja prejudicar os bens eternos os, quais, é gozado e atingido pela alma. E esta só perderá se caso o homem preferir os bens terrenos o que caracterizaria pecado, pois nos tira do caminho do bem para perseguir coisas contigentes e nem sempre garantidas. “Contudo, é próprio de uma alma pervertida e desordenada escravizar-se a elas. A razão é que, por ordem e direito divinos, foi a alma posta à frente das coisas inferiores, para as conduzir conforme o seu beneplácito”19. À segunda questão, apenas para frisar, o autor matem o já dito que se praticamos algum mal é única e exclusivamente por conta de nosso Livre-Arbítrio. O que, para nós, dado o que foi estudado, bem como todo o processo por ele desenvolvido e exemplos que nos foram apresentados dão, por ora, a resposta a mais esta indagação sobre o conceito de liberdade, sobre o crivo deste importante autor que até nos dias atuais nos instiga a estuda-lo e que incutiu seu legado, indeclinavelmente, na Filosofia e na Teologia.
Mas, como o Autor se colocaria (se isto for possível visto à distância dos séculos) em tempos atuais, em torno do conceito de liberdade? Não sendo mais um período, talvez, mais fértil do que na atualidade para que se busque a efervescência cristã/católica, bem como uma modernidade em que homem deturpou todos os seus valores (como apostou Agostinho, quando atribuiu a superioridade da lei eterna sobre a lei temporal) morais, religiosos, emfim. Agostinho aplicaria a lei eterna à, hoje, muito mais frenquentes ações más das que foram elencadas por Evódio? E como iria proceder em relação a tanta descrença na religiosidade (mesmo com o grande número de seguimentos religiosos que temos hoje) e priorização dos bens materiais (ou bens menores, como chamou o autor) sobre os divinos? São questões que não tenho condição de responde-las, mas considero salutar a ideia de tentar traçar este paralelo, no intuito de instigar um debate agostiniano em nossa modernidade, à luz do que o Filósofo pautou em todo o seu Livre-Arbítrio, bem como por toda sua vida e, para que fiquemos com algumas indagações, elenco, como fez Evódio, algumas que julgo serem dignas de explicação para que seja respondida pela (ou a partir da) obra do autor. Na opinião do Filósofo, tudo que de ruim acontecesse à humanidade seria obra e fruto da própria vontade dada, por Deus, aos homens, uma vez que fomos criados para fazermos o bem e não teríamos nenhum motivo ou necessidade para fazer o contrário. No entanto, abstraindo aqui a questão do “pecado original”, sob pena de suprimir nosso debate, acerca do tema, pois, caso aceitássemos não haveria como prosseguir, bem como registrando a divisão que o Filósofo fazia entre liberdade e livre-arbítrio, onde o livre-arbítrio poderia nos levar a fazer tanto o bem como o mal, ao passo que, a liberdade, (ou na liberdade) uma vez alcançada, só poderíamos fazer o bem. Indaguemos: sendo Deus onisciente, onipotente e onipresente, por que haveria de permitir tal vulnerabilidade em Adão e Eva? Onde, por certo, foram os dois primeiros seres a serem criados e, a meu ver, mesmo que tivessem sido instruídos, não tiveram tempo de assimilar, dado o que conhecemos de nossa capacidade de absorção e, como se sabe, não tiveram, também, aquele período desde a infância até a fase adulta para aprender. Coisa que, aliás, o próprio Agostinho teve, quando cita a história de quando roubou frutas, etc. Será que eles tinham noção dessa tal liberdade? Será mesmo que sequer eles tinham a noção de por que foram criados? Mas se pudéssemos discernir do que é ruim ou bom, por que razão haveríamos de escolher o que nos fizesse sofrer? Embora hoje em dia isso fosse mais aceitável e passível de resposta, basta observarmos a grande discrepância da desigualdade e vulnerabilidade social, onde as classes mais miseráveis têm muito menos “campo de ação” para que possam usufruir do livre-arbítrio! Por certo, essas questões anteriores, são questões que me inquietam por demais, uma vez que não me é “bem-vinda” a verdade pronta que Agostinho nos apresenta para que nos sirva à compreensão! Em algumas passagens de seus escritos, o Próprio Agostinho nos dá uma certa condição de questionar o exposto acima. Uma delas: “Deus, por quem discernimos as coisas boas das más. Deus, por quem evitamos as coisas más e seguimos as boas. Deus, por quem não caímos diante das adversidades (...)”.20 Ora!, se é através dele (Deus) que agimos conforme Agostinho disse, não há como entender que agiríamos de outra maneira por conta do fato de sermos livres. Será que, hoje, alguém por ser livre sai à rua com uma arma e tira a vida de outra pessoa só para dizer que “sou livre para tal ação” mesmo sabendo das consequências legais a que lhe serão imposta? Não há como conceber tal absurdo, visto que nem um animal (carente de razão) gosta de sofrer!
Nosso Bispo também nos diz que temos inteligência e, uma vez com ela, não agiríamos de maneira ruim. No entanto, como ele se portaria diante da inteligência maligna que vemos as nações usarem, principalmente em conflitos bélicos? Mentes “brilhantes” que são usadas para criar armas de destruição em massa, sem se preocupar com a vida humana, inclusive com a sua, muito menos com a fauna e a flora! Coisa que em nossa época é cada vez mais latente, pois na contemporaneidade de nossos dias, a questão da liberdade ou do que fazemos dela, seja num sentido religioso ou até mesmo jurídico está cada vez mais grave. Jurídico, como o exemplo acima de tirarmos uma vida de alguém de maneira fútil e religioso por haver inúmeros casos que devem “deixar Agostinho inquieto” como, por exemplo, a pedofilia, o homossexualismo, o homofobismo (uma doença social moderna) e tantos outros que vemos hoje no meio canônico. Antes de tudo, deixo claro que não sou adepto a nenhum tipo de preconceito e, apenas cito, por serem, esses, – na ótica de Agostinho – que seriam preceitos maus e, a meu ver, não há como se contentar no de que devemos acreditar pela fé, pois do contrário, não poderemos compreender e, por certo, não resolveremos estas questões.
Um outro gancho que fiz, foi buscar apoio de Etienne Gilson que, segundo a opinião de Nair de Assis Oliveira, ao expor a tese de Agostinho sobre “liberdade, vontade e graça”, me faz aludir a outra questão sobre o tema. Esse mesmo autor, que sintetizou a tese do hiponense, em um outro texto seu, da história da filosofia, nos dá (pelo menos penso que sim) motivo para mais uma vez questionar o livre-arbítrio:


“A Alma é um Deus pensante, encarregado do corpo: ela está para o corpo assim como Deus está para o mundo”.21


Podemos depreender disso que, em assim sendo, não poderíamos pecar estando ou não de posse do livre-arbítrio. Pois, se temos um “deus” dentro de nosso corpo e sendo este para nós assim como Deus é para o mundo, ié, onisciente, logo não poderíamos cair em pecado. Deus não peca e só ele possui a liberdade por conta de não pecar! E se de fato, se é como disse Gilson, que nossa alma se move por ela mesma e “viverá tanto mais feliz quanto mais desprendida estiver de seu corpo, preocupando-se apenas com o eterno”22, quem pecaria seria o “deus” existente dentro de cada um de nós, pois o corpo não poderia pecar sem que estivesse interligado com sua alma. Aliás, o corpo sem a alma tornaria apenas algo inanimado e, em decorrência disso, pereceria! Sendo assim, nossa razão advém da alma (deus) e, logo, nosso movimento do corpo. O que nos leva a crer que, caso o corpo venha a agir de modo inadequado (o que pelo dito acima seria impossível), será em decorrência da maneira despreocupada com que sua alma teve consigo, ao podemos concluir nesse sentido que é a ela mesma (a alma) a quem devemos creditar o pecado ou o mau uso do livre-arbítrio!



































BIBLIOGRAFIA:
Abbagnano, Nicola, Dicionário de Filosofia, tradução coord. e ver. Por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurice Cunio...et al.2. ed. – São Paulo: Mestre Jou, 1962.
A BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida. Ed. 1995. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.
Gilson, Étienne; A Filosofia na Idade Média – trad. de Eduardo Brandão, revisão da tradução de Carlos Eduardo Silveira Matos. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007 – (Paidéia)
Agostinho, Santo. O Livre - tradução, organização, introdução e notas de Nair de Assis Oliveira; revisão de Honório Dalbosco). – São Paulo: Paulius, 1995. – (Patrística)
Agostinho, Santo. Solilóquios . revisão de H. Dalbosco – São Paulo: Paulus, 1998 – (Patrística; 11)
_________. A vida feliz: título original: De beata vita / tradução de Nair de Assis Oliveira; Introdução, notas e bibliografia de Roque Frangiotti.

1 - Nelson da Costa Pires, acadêmico do 6º semestre do Bacharelado em Filosofia, da Universidade Federal de Pelotas – RS - Brasil

2 - Agostinho, S. De Libero Arbitrio., lb. II , cap. 1, n. 3
3 - Agostinho, S. O Livre-Arbítrio, cap. I, 1, p. 25
4 - Agostinho, S. O Livre-Arbítrio, cap. II, 4, p. 28
5 Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Introdução – Nair de Assis Oliveira, pág. 13

6 - Idem
7 - Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Introdução – Nair de Assis Oliveira, pág. 18.

8 - Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Introdução – Nair de Assis Oliveira, pág.19 (cf. Gilson, “Introduction à l’étude de Saint Augustin”, pp. 202ss).

9 - A forma (Maieutica: “Parto das Idéias”) pela qual Sócrates ensinava seus discípulos. Indagando-os sobre seus próprios temas para que eles mesmos chegassem às respostas;

10 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. I, 3, p. 27.

11 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. II, 4, p. 28


12 – Bíblia, Gêneses; 1.26-28, 31

13 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. II, 5, p. 29
14 - Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. III, 6, p. 31
15 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. III, 7, p. 31-32
16 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. IV, 9. p. 33
17 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. VI, 15, p. 41
18 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. XIª, 21b, p. 51
19 – Agostinho, S. O Livre-Arbítrio; Cap. XVI, 35ª, p. 68
20 – Agostinho, S. Solilóquios, Prece a Deus, p. 17
21 - Etienne G. A Filosofia na Idade Média, Cap.II, p. 130

22 - Idem


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